outubro 06, 2012

Primavera Árabe


A luta democrática no Oriente Médio in CARTA MAIOR 



Um seminário em Beirute, em que se pode entrar em contato direto com algumas das expressões mais significativas do movimento democrático que explodiu no ano passado no Oriente Médio. Exposições sobre a Tunísia, o Egito, a Síria, o Líbano, entre outros, permitem há mais de uma ano, com eleições realizadas em alguns países, compreender melhor o caráter desses movimentos.

Quando apareceu a primavera árabe, houve gente que se apressou em falar de uma “revolução” no mundo árabe. Caíam, surpreendentemente, ditaduras que sobreviviam há décadas, frente a manifestações como nunca haviam conhecido alguns países.

A derrubada das ditaduras de Ben Ali na Tunisia e de Mubarak no Egito foram manifestações espetaculares dessa primavera, que parecia trazer a democracia para o centro de uma região dominada por autocracias. 

Mobilizações de jovens, a que se incorporaram camadas populares – e inclusive grandes contingentes operários, no caso do Egito - tiveram a capacidade de, praticamente de forma pacifica, derrubar regimes fundados na força.

O fenômeno parecia se alastras para grande parte dos países da região, quando de repente apareceu a crise na Líbia. Logo ficou claro que se tratava de um caso distinto. Não apenas porque, pelo menos na sua origem, o regime de Kadafi tinha um caráter claramente popular, mas também porque, ao contrario da Tunísia e do Egito, mesmo se seu líder estivesse em um movimento de clara aproximação e inclusive de adesão a teses e às forças dominantes no mundo, não se tratava de um regime que tivesse estado sempre alinhado com as potências ocidentais.

A capacidade resistência do regime confirmava essas distinções, revelando rapidamente que ele não cairia da mesma maneira que caíram os governos da Tunísia e do Egito. Em parte, pelo apoio popular que o regime ainda dispunha, por outro lado pela capacidade de resistência que o governo revelava. 

Diante desses obstáculos, a oposição apelou à sublevação armada, ao mesmo tempo que as potências interessadas em derrubar o regime de Kadafi conseguiam aprovar no Conselho de Segurança das Nações Unidas uma resolução de suposta “proteção das vítimas civis”. Esta foi aproveitada pela Otan para realizar bombardeios sistemáticos contra o regime, buscando claramente sua derrubada, sem nada a ver com a proteção das vítimas civis que, ao contrário, aumentaram exponencialmente com os bombardeios.

A partir desse movimento os movimentos democráticos na região mudaram de sentido. Já nao se tratava de movimentos populares de massa, que isolavam e derrubavam, praticamente de forma pacífica, a governos autocráticos isolados e fragilizados, até que caíssem.

O caso da Síria – qualquer que seja a avaliação que se tenha do regime, da mesma forma que o anterior regime líbio – é similar. A oposição atua com violência similar à do governo, enquanto as potências que propugnam pela queda do governo buscam apoio similar à que conseguiram na luta contra o regime de Kadafi.

Este apoio não é possível pela oposição da China e da Rússia, que haviam autorizado a ação na Líbia e se deram conta que ela tinha sido utilizada para derrubar o regime de Kadafi.

Assim, a primavera árabe propriamente dita, se limitou, até aqui à Tunisia e ao Egito. Os outros processos estão sobredeterminados pelo contexto geopolítico internacional. Quem pode dizer que hoje a Líbia se democratiza? 

Postado por Emir Sader às 15h42 no dia 2 de outubro de 2012,  site Carta Maior. 

fevereiro 11, 2012

Revista Cult » O crime de Lady Gaga




O crime de Lady Gaga

(...)

Uma estética pop para o pós-feminismo?
A obra da jovem Lady Gaga não é objeto descartável como a maioria das mercadorias promovidas no contexto da indústria e do mercado cultural. Se nos detivermos em sua música, em sua dança ou em sua imagem isoladamente, não entenderemos o todo da mercadoria. Portanto, é preciso estar atento à performance que ela realiza. A apreciação disto que devemos hoje chamar de obra-produto ou produto-obra deve começar por aí, tendo em vista que, acima de tudo, Lady Gaga é uma performer que agrega em seus vídeos diversas formas artísticas que vão da música ao cinema, passando pela dança e chegando a uma relação curiosa com um aspecto inusitado da produção contemporânea nas artes visuais. Lady Gaga tange em seus vídeos mais famosos questões que estão presentes na obra de artistas contemporâneas que podemos chamar de vanguardistas por falta de expressão melhor, tais como Cindy Sherman, Daniela Edburg e Chantal Michel. No Brasil, Karine Alexandrino, Paola Rettore ou o pernambucano Bruno Vilella praticam a mesma suave ironia até o mais cáustico deboche com trabalhos sobre mulheres mortas.
O tema da mulher morta torna-se quase um lugar-comum na arte contemporânea, como foi no século 19. Naquele tempo, ele representava o impulso próprio do romantismo que via na mulher falecida e inválida um ideal agora retomado de modo irônico por diversas artistas contemporâneas. Lady Gaga vai, no entanto, muito além dessas artistas em termos de coragem feminista. Enquanto elas zombam das mulheres estereotipadas que morrem como Ofélias por um homem, Lady Gaga, de modo mais surpreendente e corajoso do que importantes artistas cultas, dá um passo adiante.
No vídeo de “Paparazzi” fica exposto o amor-ódio que um homem nutre por uma mulher, a invalidez à qual ela é temporariamente condenada por sua violência e, por fim, uma vingança inesperada com o assassinato desse mesmo homem. “Incitação à violência”, pensarão as mentes mais simples; “feminismo como ódio aos homens”, dirá a irreflexão sexista acomodada, quando na verdade se trata de uma irônica inversão no cerne mesmo do jogo simbólico que separa mulheres e homens. Se em “Paparazzi” o deboche beira o perverso autorizado psicanaliticamente (a mulher sai da posição deprimida ou melancólica e aprende a gozar com seu algoz, que ela transforma em vítima), em “Bad Romance”, “o vídeo mais visto de todos os tempos”, mulheres de branco – como noivas dançantes – surgem de dentro de esquifes futuristas para curar uma louca que chora querendo ter um “mau romance” com um homem. Um contraponto é criado no vídeo entre a imagem do rosto da própria Gaga levissimamente maquiado, demarcando o caráter angelical de sua personagem, em contraposição ao caráter doentio da personagem da mesma Gaga de cabelos arrepiados e olhos esbugalhados. Entre eles a bailarina sensual junto de suas companheiras faz o elogio do corpo que é obrigado a se erotizar diante de um grupo de homens.
A noiva é queimada. Sobre a cama, no fim, a noiva como um robô um pouco avariado, mas ainda viva, contempla o noivo cadáver. A ironia é o elogio do amor-paixão, do amor-doença e morte ao qual foi reduzido o amor romântico pela estética pop da ninfa pós-feminista. O feminismo só tem a agradecer.
Em “Telephone”, a estética eleita é a da lésbica e da pin-up. Ambas criminosas. A primeira por ser uma forma de vida feminina que dispensa os homens, a segunda por ameaçá-los com uma estética da captura (a mulher-imagem-de-papel, a mulher “cromo”, a mulher-desenho-animado que configura o conceito do “broto”, do “pitéu”). No mesmo vídeo o personagem de Gaga compartilha com Beyoncé uma cumplicidade incomum entre mulheres.
Esse sinal é dado no meio do vídeo, quando Beyoncé vai resgatar Gaga na prisão e ambas mordem um pedaço de pão, que logo é lançado fora como algo desprezível. A comida mostra-se aí como o objeto do crime. O vídeo é mais que um elogio ao assassinato do mau romance, ou da vingança contra o evidente amor bandido de quem a personagem de Beyoncé quer se vingar. Trata-se de uma profanação da comida pelo veneno que nela é depositado. O amor bandido é morto pela comida, uma arma simbólica muito poderosa associada à imagem da mulher-mãe, da mulher-doação, dedicada a alimentar seu homem na antipolítica ordem doméstica.
O palco é a lanchonete de beira de estrada como em Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. O assassinato é o objetivo do serviço das duas moças perversas que, no fim do vídeo, dançam vestidas com as cores da bandeira norte-americana – meio Mulher Maravilha – diante dos cadáveres de suas vítimas, já que, além do amor bandido, todos morreram. Cinismo? Sem dúvida, mas como paradoxal autodenúncia.
Mas o maior crime de Gaga, aquilo que fará com que tantos a odeiem, não será, no entanto, o feminismo sem-vergonha que ela pratica como uma brincadeira em que o crime é justamente o que compensa? E, como ídolo pop, não poderá soar aos mais conservadores como um modo de rebelar as massas de mulheres subjugadas pela perversa autorização ao gozo, doa a quem doer?

Marcia Tiburi