A mostra Plural como o Universo e uma nova biografia sobre o Fernando Pessoa revelam detalhes da história de um dos maiores poetas da língua portuguesa.
maio 15, 2011
Migalhas de um casamento, por Fred Vargas
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"Com 86 anos, a gente tem o direito de começar a viver. Tem noites assim. Noites em que um homem se levanta e age."
Pequenas migalhas de pão iam da cozinha ao quarto, e chegavam até os lençóis limpos em que repousava a velha, morta e de boca aberta. O delegado Adamsberg, indo e vindo a passos lentos ao longo das migalhas, as contemplava em silêncio, perguntando-se que Pequeno Polegar, ou, no caso, que Ogro, as perdera por ali. Era um pequeno e escuro apartamento térreo de três cômodos no 18ºarrondissement de Paris.
No quarto, a velha deitada. Na sala de jantar, o marido. Este aguardava sem impaciência ou emoção, apenas olhando com certa avidez para o jornal, dobrado na página das palavras cruzadas que ele não se atrevia a prosseguir enquanto os tiras estivessem no local. Já tinha contado sua breve história: ele e a mulher tinham se conhecido numa empresa de seguros, ela secretária, ele contador, casaram-se alegremente sem saber que seria por 59 anos. E então a mulher morrera durante a noite. De parada cardíaca, explicara por telefone o delegado do 18º arrondissement. Acamado, ele ligara pedindo a Adamsberg que o substituísse. Faça-me esse favor, é só uma horinha, rotina matinal.
Adamsberg acompanhou uma vez mais a trilha de migalhas. O apartamento estava impecável, poltronas revestidas com encosto de cabeça, as superfícies plásticas polidas, os vidros sem manchas, a louça lavada. Remontou até a lata de pão, que continha meia baguete e, envolto num pano limpo, um naco grande de pão sem o miolo. Voltou para junto do marido, puxou uma cadeira para perto de sua poltrona.
– Nenhuma boa notícia hoje – disse o velho, tirando os olhos do jornal. – Também, esse calor põe os temperamentos em ebulição. Mas aqui no térreo, dá para manter um ar mais fresco. Por isso é que deixo as venezianas fechadas. E dizem que também é bom tomar muito líquido.
– O senhor não se deu conta de nada?
– Ela estava normal quando fui deitar. Como era cardíaca, eu sempre dava uma olhada. Só agora de manhã percebi que tinha se finado.
– Tem umas migalhas de pão na cama dela.
– Ela gostava. De dar uma beliscada. Um pedacinho de pão ou torrada na cama, antes de dormir.
– Imaginei que ela limpasse os farelos todos depois de comer.
– Quanto a isso, nenhuma dúvida. Ela limpava da manhã à noite como se essa fosse sua razão de viver. No começo, não era tanto. Mas, com o passar dos anos, virou uma obsessão. Ela seria capaz de sujar só para poder lavar. O senhor tinha que ver. Mas também, pobrezinha, assim se mantinha ocupada.
– Mas e o pão? Ontem à noite ela não limpou?
– É claro que não, porque fui eu que levei o pão para ela. Estava fraca demais para levantar. Ela até me mandou tirar os farelos, mas eu realmente não ligo para essas coisas.Ela teria limpado no dia seguinte. Ela virava o lençol todo dia. Para quê, ninguém sabe.
– Quer dizer que o senhor levou o pão para ela na cama, e depois guardou de volta na lata.
– Não, joguei no lixo. Estava muito duro, ela não conseguia comer. Levei uma torrada para ela.
– O pão não está no lixo, está na lata.
– Sim, eu sei.
– E está sem o miolo. Ela comeu o miolo?
– Não, delegado, caramba! Por que ela iria se empanturrar de miolo? Miolo de pão duro? O senhor é delegado, não é?
– Sou. Jean-Baptiste Adamsberg, Brigada Criminal.
– Por que não veio a polícia do bairro?
– O delegado está de cama com essa gripe de verão. E a equipe dele estava indisponível.
– Estão todos gripados?
– Não, houve uma briga na noite passada. Dois mortos e quatro feridos. Por causa de uma lambreta roubada.
– Que terrível. Também, com esse calor, os miolos ficam fervendo. Eu sou Julien Tuilot, contador aposentado da empresa ALLB.
– Sim, já anotei.
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